Prestamos um tributo ao cineasta francês François Truffaut que faleceu no dia 21 de outubro de 1984 aos 52 anos.
Antes de tornar-se um diretor respeitado, o que auxiliou tremendamente essa trajetória bem sucedida foi o fato de ter sido um espectador precoce, pois na infância já demonstrava um latente interesse pelo cinema. Sua função de crítico aparelhou-o de um instrumento capaz de perceber num filme o que muitos espectadores não percebiam e até mesmo os cineastas, já que François Truffaut era profundamente identificado pelas minúcias. Truffaut reconheceu que a música sempre foi tremendamente sacrificada nos filmes. Ele tinha razão, pois se não bastasse muitas vezes as excentricidades dos próprios diretores, havia ainda uma dose de ingerência tremendamente nociva por parte de alguns produtores.
Truffaut sempre teve o mais absoluto respeito por aqueles compositores com os quais chegou a trabalhar. Aliás, para ilustrar bem essa coisa de produtores exercerem influência, cabe aqui uma citação do Truffaut: “Os produtores jamais entendem que o trabalho de realização de um filme continua após as filmagens.” Para alguns diretores, como Fellini, a música deveria cumprir uma certa função marginal. Já para Hitchcock, por exemplo, a música era uma espécie de acompanhamento. Para Truffaut, no entanto, o papel da música era muito mais que isso, já que cabia a ela o papel de não só ilustrar a imagem, mas principalmente de ajudar a reforçá-la. Com essa premissa, temos sempre nos filmes de Truffaut uma presença bastante acentuada, decisiva e funcional, da música cumprindo o papel que dela se espera.
O compositor que mais trabalhou com Truffaut foi Georges Delerue, a partir de TIREZ SUR LE PIANISTE. Por ocasião desse filme, Truffaut chegou a oferecer a trilha para alguns compositores e nenhum deles chegou a demonstrar interesse, enquanto que Delerue não só se interessou como também percebeu claramente o espírito do filme. Bem por isso a trilha de TIREZ SUR LE PIANISTE chega a ser um pastiche do que eram os filmes americanos.
Delerue teve outros trabalhos admiráveis para Truffaut como JULES E JIM, A SEREIA DO MISSISSIPI, AS DUAS INGLESAS E O AMOR. Um destaque especial para a trilha de O ULTIMO METRO, onde Delerue não só grifa com sua característica musical as cenas, mas sobretudo reveste o filme de uma emoção forte emanada da música. Por exemplo, na cena com os personagens Marion e Lucas, o tema principal é arranjado de forma profundamente envolvente. A MULHER DO LADO, outro trabalho musical fantástico de Georges Delerue, onde a música fala pelos próprios personagens, já que o processo de comunicação verbal entre os dois protagonistas, interpretados respectivamente por Gerard Depardieu e Fanny Ardant, fica dificultado, dada a situação comprometedora dos dois. A NOITE AMERICANA é um filme que se revela como uma autêntica aula de cinema, nesse contexto a música cumpre o papel que dela se espera de reforçar todas as cenas. O último filme de Truffaut foi DE REPENTE NUM DOMINGO, filme concebido em sete semanas e meia, muito mais com a preocupação de caracterização de um filme B, do que pressa.
François Truffaut tinha uma indisfarçável simpatia por Hitchcock; a mesma era extensiva ao compositor Bernard Herrmann, a quem conseguiu convencer a fazer a trilha de A NOIVA VESTIDA DE PRETO.
Houve compositor com quem Truffaut trabalhou em apenas um filme, como foi o caso de Jean Constantin, em 1959, com o filme OS INCOMPREENDIDOS. A música acompanha o universo de adolescentes, enquanto o filme procura mostrar a grande diferença existente entre os mundos do adolescente e do adulto. Outro compositor que marcou presença nas realizações cinematográficas de Truffaut foi seu compatriota Antoine Duhamel, valendo o destaque para a trilha de BEIJOS PROIBIDOS. Mesmo com o aproveitamento de uma canção de Charles Trenet para funcionar como uma espécie de tema, a música é um fio condutor de todas as emoções, às vezes com um caráter invocativo das recordações da juventude. Um outro trabalho de Duhamel para Truffaut foi em DOMICÍLIO CONJUGAL, de 1970.
De outra parte, existem momentos musicais mágicos em DOMICÍLIO CONJUGAL, como a passagem Les Charmes du Japon. A HISTÓRIA DE ADELE H é um filme sobre a desconhecida filha de Victor Hugo. O cineasta François Truffaut tinha acabado de ler o livro de François Porcile sobre o compositor Maurice Jaubert, que compôs algumas trilhas, principalmente para os filmes dirigidos por Marcel Carné. Mas as obras de Jaubert, em sua maioria, não haviam sido reproduzidas, principalmente em se tratando das composições eruditas. Isso acabou estimulando ainda mais Truffaut a utilizar a música de Jaubert, composições do período entre 1930 a 1940.
NA IDADE DA INOCÊNCIA, filme em que Truffaut tem a experiência de mais uma vez trabalhar com crianças; aliás, o cineasta reconhecia: “Trabalhar com criança é uma experiência espantosa, muito mais difícil do que trabalhar com adultos”.O encantamento de Truffaut com a música de Jaubert o estimula a aproveitar excertos da Sonata para Dois Violinos, Violoncelo e orquestra de cordas. Além disso, Truffaut também aproveita um Divertimento de Jaubert que caiu como uma luva dentro do contexto daquela história baseada em fatos reais vivenciados pelo cineasta.
Em seguida, o filme O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES aborda um tipo neurótico, frenético, compulsivo e paquerador, com um modus operandis totalmente contrário aos conquistadores convencionais. Mais uma vez, Truffaut vai buscar inspiração na música de Jaubert, extraindo trechos da Intermedes para orquestra e cordas.
Truffaut confessou, certa vez, que gostaria de ter feito um filme contando uma história de amor com um fundo de música clássica. Fico então imaginando se de repente, ele não iria recorrer a Mozart para rechear a trilha sonora desse filme.